Dando continuidade a esta série em que LGBTs contam sobre suas vidas em primeira pessoa, convidamos Bambola Star Kaxinawá para falar sobre sua experiência de vida como indígena e travesti. Figura badalada da noite LGBT italiana, Bambola quebrou a internet em 2018 e se tornou um meme ao compartilhar momentos de uma vida luxuosa em suas redes sociais. Muito simpática, Bambola inicia seus vídeos saudando seus seguidores com o bordão: “Bom dia, Brasil. Boa tarde, Itália”, sempre de “cara lavada”, com seu batom Dolce & Gabbana. O texto a seguir é a transcrição editada de áudios trocados com ela no dia 17 de abril, via whatsapp.
__________
“Sim! Eu sou Kaxinawá. Sou da tribo Kaxinawá – Huni Kuin. Eu nasci na Aldeia Caucho, no rio Muru, no município de Tarauacá, no Acre. Como pessoa e como indígena, algo que eu sempre trouxe em minha lembrança de quando eu era pequenininho, quando eu tinha mais ou menos uns oito ou dez anos, o meu irmão mais velho chamado Manuel – que ainda é vivo e está lá no Acre, na minha aldeia – ele me levava pra pescar e me ensinava a mergulhar e pegar peixe, lá no fundo do gapó. Gapó é um laguinho onde os índios pescavam para comer. Essa é uma lembrança que eu trago comigo e que eu nunca esqueci”.
“Depois eu morei em Rondônia. No começo do meu percurso de vida, de luta e de sobrevivência, como criança de rua. Deixei Rio Branco e os papelões da vida debaixo da ponte onde eu vivia, e cheguei em Porto Velho. Eu não sabia nada da vida e vivi por alguns anos ali na região da rodoviária. Logo em frente a Rodoviária de Porto Velho tinha uma pensãozinha que era de uma senhora chamada Socorro. Pouco mais pra cima tinha uma zona muito perigosa em que pessoas do mundo travesti se prostituíam e havia homens drogados. Subindo uma ladeirinha da rodoviária tinha um hotel que se chamava Hotel Garça. Depois de algum tempo aquela família, dona do hotel, me encontrou perto da rodoviária vivendo no esgoto. Eles passaram a me dar comida e eu me oferecia para tirar o lixo. Então eles começaram a ter confiança em mim e criaram amor, um certo carinho por mim, e me deixaram dormir por algum período na lavanderia do hotel. Eu tive um grande respeito por eles, que representaram uma família que eu não tinha naquele momento”.
“O meu percurso de sobrevivência teve início a partir de um sentimento humano que me fez sair da minha aldeia para procurar um, vamos dizer assim, futuro. Que é aquilo que Deus me deu e que hoje eu tenho aqui na Itália. Conto minha história para que outras crianças não precisem passar pelo que aconteceu comigo. Peço a todas as crianças do mundo LGBT que se tiverem a oportunidade não deixem de estudar. Para estudar, crescer e se formar e assim ter um futuro melhor. Para mostrar à essa sociedade hipócrita que até hoje faz de nós, do mundo do LGBT, do mundo da arte gay, do mundo da travesti, do mundo de tudo o que nós somos e representamos, sofrer por diversos tipos de preconceito. O meu coração me pedia para eu ser o que me representa hoje. Tive que ter uma grande força e combati uma grande guerra na vida, com o mundo que me fez passar aquilo que eu passei quando eu era criança. E isso me fortaleceu. Me deu força, coragem e energia para conversar e gritar, como muitas vezes eu fiz, mesmo batendo de frente com leis totalmente negativas para nós. Mas não me fez desistir. Vou gritar sempre pelo direito dos homossexuais. Eu sempre declarei que não existe gay, travesti e etc… precisamos entender que somos um único grupo, os homossexuais. E os homossexuais precisam ter a liberdade de viver como gostam. De botar um peito, de botar um silicone e de representar o direito e o amor de uma mulher como eu, que sou trans. Ou ainda ter o direito seguir sendo um rapaz, sem precisar modificar seu corpo. Buscar essa liberdade me fez deixar a minha família, o meu povo. Mas hoje eu tenho um grande orgulho de minha origem indígena”.
“Sinto saudades da minha terra e do povo do meu sangue. É óbvio que sim. Eu senti saudade e chorei muitas e muitas vezes, debaixo de chuva, nas rodoviárias, passando fome e sentindo dor, solidão e desespero. Procurando um abraço materno, procurando uma solução para a minha vida. Mesmo sendo uma criança, era aquilo que eu procurava. E eu sentia saudade do meu povo. Porque, eu sendo indigena, se eu vivesse ali quando eu era pequenininho e não tivesse saído de lá naquele momento difícil que eu estava vivendo quando criança, a minha floresta poderia me dar sobrevivência. E o mundo que eu enfrentei para chegar onde cheguei, para ser aquilo que sou hoje, me fez sentir muita saudade da minha floresta e do meu povo Kaxinawá”.
“Acho que nós, homossexuais, temos um destino único. Tem aqueles que lutam para representar a honra da mulher, como eu. Coloca o peito e lapida o corpo para chegar a imagem da mulher, e tem os homossexuais que seguem como rapazinho. E nós sabemos e sentimos o desejo de gostar e amar de pessoas do mesmo sexo. De querer fazer amor com outro rapaz, de querer beijar, abraçar e querer um amor verdadeiro de uma outra pessoa do mesmo sexo. Isso nós já percebemos desde pequeno. Acho que todos os homossexuais sabem do que eu to falando e não negariam. Eu já sentia de pequenininho um amor por uma outra pessoa do mesmo sexo que eu. Mas naquela época eu não pude e não tive a oportunidade porque eu era um menino, uma criança de rua. E não tinha o privilégio de realizar aquilo que eu realizei aqui na Itália. De completar a minha verdadeira felicidade, representando o amor à mulher, aquilo que eu sou. Hoje eu me sinto uma mulher, sou feliz com o corpo que tenho, em ter feito os meus seios, de ter mudado a estrutura do meu corpo para ter aquilo que para mim é a imagem da mulher. Desde pequeno eu sonhava com essa oportunidade pra mim, mas nunca imaginei que iria chegar onde cheguei e que teria realizado uns dos melhores sonhos. Assim como milhares de homossexuais, enfrentei a vida verdadeira, o preconceito, o risco de morte, o tapa e o cuspe na cara, a faca no pescoço, o tiro no corpo. Porque quando nós homossexuais passamos a querer enfrentar e viver nossos sonhos, como o meu de ser uma travesti, nós estamos prontos para enfrentar tudo isso. Enfrentei tudo isso que eu estou falando e hoje sou feliz. Eu não tenho uma preferência, pode me chamar de trans ou de mulher, para mim o importante é que me chame com respeito por aquilo que eu sou. Deus me fez ser homossexual. E hoje eu me represento e estou com muito respeito na categoria da mulher. Pode me chamar de trans ou de senhora. Como aqui na Itália a cultura e a educação são diferentes, eu sou muito realizada como senhora. Então, para mim é uma felicidade”.
“A história de ser um menino indígena e homossexual, a gente sente desde novinho. Logo no começo da minha infância percebi e sentia ser um menino homossexual indígena. Naquela minha tribo isso era muito raro, raríssimo. Agora não, tem milhares, eu sei que tem milhares de homossexuais indígenas, porém infelizmente isso ainda é um tabu. Eu acho que não deveria ser mais. Acho que deveria ter um combate contra esse preconceito e resistência, a favor dos meninos homossexuais indígenas. Isso não é uma coisa vergonhosa. Mas infelizmente tem uma certa disciplina no nosso grupo de que não poderia ter isso. Na minha época era muito mais difícil um menino indígena perceber que era homossexual. Mas nós homossexuais, nós percebemos, nós sentimos um amor verdadeiro por uma outra pessoa do mesmo sexo”.
“A família pra mim hoje é formada pelos meus amigos do trabalho. A família é considerada sobre amizades verdadeiras, com respeito mútuo. Gente com quem se compartilha dores e tristezas, enfim, as coisas difíceis da vida. Mas sozinha a gente nunca está, pois sempre temos Deus. Nós nascemos e morreremos com Deus. Eu acredito assim. E eu acredito que eu nasci abençoada por Ele. Deus me botou na terra e vou morrer com Ele. A vida da terra faz com que eu sinta saudades de pessoas que praticamente não conheci, como a minha família indígena, o meu pai e minha mãe indígenas, que morreram quando eu tinha praticamente quatro meses de nascida. Assim me conta minha tia Kaxinawá, irmã de minha mãe. A família que eu construí aqui são de amigos que passaram a viver comigo durante o meu percurso de trabalho. São pessoas que me acompanham, me ligando fora do trabalho, tarde da noite, perguntando como eu estou, se já comi, se estou precisando de algo, se estou bem. São essas pessoas que eu tenho como família. Mas tenho a minha família Kaxinawá, com irmãos e sobrinhos, que vivem aí no Brasil, mas que eu nunca tive a oportunidade de desenvolver um amor. Eles vivem aí e já faz muitos anos que eu não vou ao Brasil. Mas espero que um dia eu tenha a oportunidade de abraçá-los”.
“Envelhecer eu acredito ser uma vitória de vida. Envelhecer é se tornar uma porta-voz de que passamos pela juventude. É uma experiência de mundo, de vida, é uma felicidade do ser humano quando você chega numa idade de 50, 60, 70, 80 anos. Para mim, as pessoas que chegam nessa faixa etária são guerreiras legendárias. São reginas ou reis legendários que chegam a uma certa idade e envelhecem. O envelhecimento faz parte de uma história de sobrevivência, de uma vitória de vida de muito valor. Uma experiência que possamos assegurar de que a juventude existiu. É o registro de uma experiência única. Penso que é uma felicidade e é um orgulho, para uma pessoa que chega a uma certa idade, de ainda ser viva”.
__________
Nota do editor: Durante a entrevista Bambola Star Kaxinawá afirmou ter 48 anos. Coincidentemente esta foi a mesma idade que ela disse ter durante a entrevista para o jornalista Chico Felitti durante a produção do podcast Além do Meme, gravado dois anos antes. De acordo com reportagem publicada no site Identidades Marginais em fevereiro de 2021, assinada pelo fotógrafo Igor Furtado, Bambola teria nascido no ano de 1970. Considerando que suas festas de aniversário ocorrem sempre no dia 2 de agosto, Bambola deve ter atualmente 51 anos. Mas, como boa diva, ela não revela essa informação com precisão.