Com a palavra, Jessika Bernardiny

O dia 29 de janeiro de 2004 definiu a data hoje conhecida como o Dia da Visibilidade Trans. Foi quando um coletivo de pessoas trans se mobilizaram de forma organizada em busca de seus direitos e se manifestaram na Praça dos Três Poderes, em Brasília. De lá pra cá, alguns direitos básicos e fundamentais foram conquistados, mas ainda há muitos outros a serem reconhecidos.

Para marcar esta data, convidamos Jessika Bernardiny, defensora popular dos direitos humanos, também ativista e eterna estudante, que participa das atividades promovidas pela EternamenteSou. O texto a seguir é a transcrição editada, que foi posteriormente revisada por Bernardiny, a partir de áudios trocados com ela no dia 27 e 28 de janeiro, via whatsapp.
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Jessika Bernardiny presente no lançamento do livro “Vire a página”, que apresenta histórias de mulheres vítimas de violência. [Imagem: Acervo pessoal de Jessika Bernardiny]

Me chamo Jessika Bernardiny Teixeira de Melo, sou nordestina, nascida em Natal, no Rio Grande do Norte, no dia 22 de maio de 1975. Desde muito cedo comecei a trabalhar na agricultura e venho de uma família de onze irmãos. Comecei a minha transição muito cedo, ainda na adolescência. E sofri muitas violações. Quando eu vivia em Natal, tentaram me matar. Sofri atropelamentos, acho que propositais. Eu sofri… tomei três tiros. Dois deles quase tiraram minha vida. Mas graças a Deus, não. Depois, fui morar em João Pessoa, na Paraíba, onde comecei a lutar pelos direitos das pessoas transexuais após presenciar a morte de uma amiga que foi assassinada brutalmente. Tentaram matar outras amigas nossas, que também trabalhavam ali no Parque Solon de Lucena, no Cassino da Lagoa, no centro de João Pessoa. Ainda muito cedo fui parar na TV Cabo Branco, afiliada da Rede Globo na Paraíba, para dar entrevista e pedir por justiça. Muito jovem, dei minha cara a tapa. Migrei novamente para o Recife e enquanto estive lá presenciei vários assassinatos [de pessoas transexuais] e logo vim para São Paulo.

Jessika Bernardiny em sua juventude. Ela começou sua hormonização aos 13 anos. [Imagem: Acervo pessoal de Jessika Bernardiny]

Cheguei em São Paulo muito jovem e fui trabalhar nas ruas, me prostituindo, como garota de programa. Foi um sofrimento total! Tentaram me matar mais uma vez. Minhas companheiras e eu chegávamos a ser detidas quatro, cinco vezes por noite. Fora a violência que a gente passava por parte da polícia, da polícia militar, que era muito repressora, perseguidora e que nos humilhava com agressões verbais e física. Eles cortavam o cabelo da gente. Presenciei muitas amigas minhas sendo mortas atropeladas, correndo das viaturas. A violência era tremenda! Até que tive um casamento. Mas ali havia também muita violência. Violência verbal. Fiquei um tempo afastada do mundo, da prostituição. Viajei então para a Europa, onde trabalhei como bailarina e também me prostitui muito. Tive um pouco de paz na Itália, mas conheci muitos países da Europa. Fui assaltada na Europa, perdi uma quantia muito alta de dinheiro, tentei tirar um documento que não deu certo e acabei voltando para o Brasil.

Ao retornar ao país, comecei a viajar. Viajei o Brasil quase todo, em especial as regiões sudeste, sul e centro-oeste, sempre de carona com os caminhoneiros. Trabalhando nas capitais, nas grandes capitais. Conheço todos os estados do Brasil e o Distrito Federal, e alguns interiores. E fui morar em Curitiba. Lá, fui a única transexual a participar do Movimento Estudantil. Eu trabalhei a vida inteira como ativista. Não apenas pelo fato de ser uma mulher transexual. Participei da primeira parada LGBTQIA+ na Avenida Paulista, que aconteceu com pouquíssimas pessoas [realizada em 28 de junho de 1997]. Logo muito cedo, aprendi a participar da luta por nossos direitos com a Andréa de Mayo. Cheguei a morar com ela. Conheci também a finada Brenda Lee, a Caetana, que tinha uma casa de apoio na Rua Major Diogo, aqui na Bela Vista. E foi nesses contextos que eu aprendi a ser ativista.

As amigas Paula Muniz e Jessika Bernardiny curtindo a noite no antigo Bar da Tia, que ficava em frente ao Hotel Grants, no centro de São Paulo, onde trabalhavam “as mais mais”. [Imagem: Acervo pessoal de Jessika Bernardiny]

[Mais recentemente] participei do projeto Transcidadania, realizado aqui em São Paulo, proposto pelo então prefeito Fernando Haddad. Me inscrevi e comecei a participar das ações do projeto. E foi aí que comecei a estudar. Eu não tive oportunidade de estudar na minha adolescência. Até por causa da minha transição. Eu comecei muito cedo a minha transição hormonal e a minha transformação. Pois desde que comecei a estudar, já passaram mais de oito anos, eu não parei mais de estudar e participar de cursos e atividades formativas. Hoje sou cozinheira, sou repórter, sou cuidadora de idosos. São formações que conquistei por meio desses cursos.

Fui para Curitiba, nesse movimento estudantil e dei continuidade aos estudos. Fiz a inscrição para concorrer a uma vaga para um curso disputado. Milhares de pessoas inscritas. E eu fui selecionada. Participei da formação para ser Defensora Popular dos Direitos Humanos, pelo Instituto Federal do Paraná, em parceria com a Defensoria Pública do Paraná e da Defensoria Pública da União. Foi quase um ano de curso, com palestras, mutirões nas comunidades e estágio dentro das defensorias públicas. Eu não levanto apenas a bandeira do movimento LGBTQIA+, participo também de diversas outras causas. Como quando tem uma manifestação também dos professores, dos metalúrgicos, dos caminhoneiros quando tem uma manifestação das categorias que trabalham, que levantam este país, eu sempre estou presente. E geralmente sou das poucas mulheres transexuais que conseguem participar. Antes da pandemia, sempre que havia uma manifestação eu participava.

Ao centro, com o capelo, Jessika Bernardiny, com amigos e colegas, durante a formação do curso Defensora Popular dos Direitos Humanos, pelo Instituto Federal do Paraná. [Imagem: Acervo pessoal de Jessika Bernardiny]

A gente vive em um país homofóbico, racista, extremamente violento, patriarcal, onde todas as minorias, inclusive as pessoas afrodescendentes e as pessoas indígenas, em qualquer classe social, sofrem muito preconceito. Eu também luto por essas causas. Também luto em defesa dos animais e do meio ambiente. Sou uma pessoa muito naturalista e defendo o meio ambiente. Abraço as causas. Procuro dar voz a quem não tem voz, as pessoas em situação de vulnerabilidade social, em situação de rua e de extrema pobreza no Brasil. E eu participei de muitas manifestações para exigir os nossos direitos junto aos poderes legislativos, sejam eles municipais, estaduais e federais. Fui muitas vezes para Brasília, onde cheguei a morar por muito tempo. São Paulo, Curitiba, Brasília e Natal foram as cidades nas quais morei por mais tempo ao longo das últimas três décadas. E a minha vida é essa aí. Tem sido uma vida com muito turbulência. É muita perseguição, é muita rejeição. Muitas coisas aconteceram.

[Imagem: Acervo pessoal de Jessika Bernardiny]

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Nota do editor: Jessika Bernardiny cita em diversos momentos ter presenciado o assassinato de amigas e colegas. Esta terrível e alarmante realidade é muito comum e conhecida e precisa mudar urgentemente. De acordo com pesquisa realizada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, divulgada esta semana, 140 pessoas trans foram mortas por transfobia no Brasil em 2021.

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Mirella Mota

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